Ela sentou-se no lado oposto da pequena calçada. Ele parecia cansado, mas ainda assim não deixava de encantar, de assustar, de cantar, e dizer suas verdades.
Ele levantou os olhos e deparou-se com os seus.
- Que fazes aqui de novo?
- Como assim?
- Vieste a semana inteira, e me olhaste, vasculhaste. Onde queres chegar?
Ela ofereceu a água que tinha em mãos. Ele aceitou. Ela atravessou a rua e sentou-se ao seu lado, a certa distância.
- O que queres?
- Apreciar tua arte.
- É mais do que isso. Houve uma pausa - O que queres?
- Quero entender porque quando tu sorris, teus olhos mostram algo tão absurdo, quero entender o que me faz vir até aqui inconscientemente. Espero que entendas o que quero dizer.
- Não entendo muita coisa, e é isso que faz delas algo importante.
- Sei como é, mas isso se torna frustrante. Quando observar e saber estar diante de algo importante para si torna-se pouco, isso assusta.
- Pela terceira vez, o que queres?
- Eu não faço a menor idéia, só sei o que quero quando me sento ali e te ouço cantar. Não pense que estou apaixonada ou algo do tipo. Se fosse isso, seria mais fácil. Eu poderia tentar te seduzir, poderia tentar de tudo que me fosse possível, e se não desse certo eu teria minha dose de raiva, te maldiria por um tempo e depois de mais um tempo riria.
- Tem certeza que não é isso? Perguntou ele fitando seus olhos, como se pudesse atravessá-los.
- Sim. Não entenda mal, mas eu até preferia que fosse, seria mais fácil de controlar. Não sei o que é isso.
- Sabe, quando eu era jovem, o primeiro artista que conheci era um mendigo. Ele era horrível. Cantava mal, vestia-se mal, cheirava mal, era feio e mais qualquer coisa que faça uma pessoa parecer totalmente desprezível. Mas eu sempre parava para vê-lo. Eu não entendia direito o que ele dizia. Eram coisas muito estranhas, muito fortes. Minha mãe puxava-me pela orelha para sair de perto dele, até que um dia eu fugi de sua mão certeira e sentei-me ao seu lado. Perguntei humildemente porque estava ali. Disse-lhe que preferi dizer-lhe que ele não agradava, para que outra pessoa não fizesse de uma maneira pior. Ele respondeu-me sorrindo que eu era um bom garoto, preocupava-me com aqueles que muitos desprezavam. Disse-me que fora expulso do exército, por não jurar a bandeira, negara-se já que parte de sua família havia morrido de fome graças ao governo, a querida pátria que não respeitava, mas exigia respeito e amor. Não contou-me toda sua vida, mas disse-me o que importava, não disse-me o porque estava ali, deu-me a liberdade para imaginar o que lhe levara aquela vida.
- Farás o mesmo comigo?
- Não sei se devo. Pareces realmente precisar de algo que tenho. Não sei o que é, mas teus olhos me pedem isso com dignidade. Mereces o que queres, apenas precisamos saber o que é. Porque tanto observas meu pescoço?
- Nunca tive coragem de usar essa pedra.
- Acreditas no “poder” dos cristais?
- Sim.
- Acreditas por que são bonitos, agradáveis e interessantes, ou porque já sofreste a influencia de algum.
- Porque já sofri a influência de vários.
- Sabes como usar a obsidiana?
-Sim, mas sempre me assustou um pouco.
Ele tirou o colar com a pedra escura em seu centro do pescoço moreno.
- Há quanto tempo tens ela?
- Tinha há uns dez anos.
- Tinha?
- É tua.
- Se não fosses tu a me dar, eu confesso que recusaria.
- Percebi que tens uma ametista ai, usa junto, uma equilibra o efeito da outra. Me pareces a pessoa certa a usá-las. Elas te ajudarão bastante, não me pergunte no que.
Gostaria de te ver usando minha obsidiana, perdão, tua obsidiana.
- Tua, terei o mais prazer em usar a tua obsidiana.
- Assim seja. Vai embora agora. Tens muito a fazer, sinto isso, e estarei aqui amanhã se quiseres conversar.
- Tenho muito a escrever e pensar.
- Voltarás?
- Até desistir de descobrir o que é isso, o que me chama pra cá todos os dias.
- Confesso que espero que demores a desistir, e que não descubras. Até amanhã.
Ele colocou o colar em seu pescoço. Ela levantou-se, olhou mais uma vez em seus olhos e foi embora, sem rumo e nem vontade de ir, mas “tinha muitas coisas a fazer.”